3 de jan. de 2009

Coisa de criança

Inspirada numa memória remota

- Vamos logo! Daqui a pouco tenho que subir jantar. O que os dois estão cochichando aí?
Sim, ela estava disfarçando. Havia planejado toda aquela situação.
O cúmplice olhou para ela e deu uma piscadela antes de chamar:
- Vai, todo mundo, em fila de frente pra mim.
Ela colocou-se na terceira posição da direita para a esquerda. O cúmplice cegou-o, sorriu e começou:
- É esse?
O cúmplice havia começado pelo outro lado só pelo prazer de vê-la desesperar-se e apontou para a primeira pessoa da esquerda. “Droga”, agora havia cinco obstáculos antes da concretização do seu plano.
- É esse?
- Não.
- É esse?
- Não.
Era preciso paciência...
- É esse?
- Não.
- É esse?
- Não.
Ela prendeu a respiração. Seria a próxima.
- É esse?
E o cúmplice fez uma nada discreta pressão com a ponta dos dedos na têmpora do cego e repetiu a pergunta:
- É esse?
- É.
Todos sorriram.
- E o que você quer dele? Beijo, abraço, aperto de mão ou passeio no bosque?
Ela sentiu tontura porque ainda mantinha a respiração presa. Suas mãos suavam.
O cego, que até então se deixara conduzir e manipular, de bom grado, decidiu tomar as rédeas da situação.
- Passeio no bosque.
A decepção estampou-se no rosto dela. Tantos planos. Tantas esperanças. Expectativa altíssima. Frustração gritante. Com voz azeda pediu para irem logo.
O “passeio no bosque” era uma volta em torno da construção.
Ela, passos acelerados. Estava furiosa.
Quando chegaram ao lado oposto de onde estavam o cúmplice e os figurantes, ele a tomou pelo braço e a fez parar.
- Posso te beijar?
Sua voz era macia. Seu toque era macio. Seus olhos eram macios. Só ela era dura.
- Claro que não. Você pediu “passeio no bosque” e não “beijo”.
Ele sorriu, não esperava outro tipo de resposta da menina mais brava que conhecia.
- Mas vou te beijar assim mesmo.
Ele a encostou na parede e a beijou. Foi um beijo desajeitado, sôfrego, sufocante. Os dentes de chocaram por duas vezes. Um beijo de língua. Roubado. O primeiro beijo de amor dela.
Terminada a carícia, seguiram, devagar, com o passeio no bosque.
Ela, rememorando cada detalhe que, um dia, contaria aos netos, ainda sentia aquele gosto de boca em sua boca e tinha certeza que, mais tarde, cheiraria sua roupa e o cheiro dele estaria nela.
Com sua visão afetada pelo primeiro beijo, olhou para ele de canto de olho. Ele mantinha a cabeça baixa, mas assobiava. Ela então teve a certeza que ele sofria de timidez, que ele havia pedido o “passeio no bosque” para beijá-la longe dos olhos de todos. Mas ele tinha sido o primeiro e ficariam juntos para sempre.
Ele, assobiando, pensava que aquele era um grande momento. Ele havia beijado a menina mais brava do mundo. O beijo não tinha sido tão bom, mas eles tinham só treze anos, se aperfeiçoariam. O que importa é que ele a tinha beijado. O próximo passo era conversar com o cúmplice. Impulsionado pelo seu caráter volúvel, estava determinado a beijar escondido – para não manchar sua reputação de bom menino – todas as meninas do grupo até o fim do verão. Ela tinha sido só a primeira.

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