30 de jul. de 2009

Travessia

Inspirada numa preferência


Abriu a quarta garrafa de vinho com dificuldade.

Tomou um longo gole no gargalo.

Havia desistido da taça no meio da primeira garrafa.

Bebia sozinha. Formalidades eram dispensáveis.

Era um ritual passar o dia 30 de julho sozinha.

Sofrendo.

Chorando.

Neste ano, decidira embebedar-se.

Olhou para as fotos espalhadas na cama.

Deitou sobre elas.

Suas roupas ainda estavam úmidas do banho de chuva e as fotos grudavam nelas.

Teve medo de danificar as imagens.

Eram as únicas coisas dele que restavam.

Despiu-se.

Deu play no CD.

Milton inundou o ambiente.

"Quando você foi embora fez-se noite em meu viver.

Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar".

Milton era perfeito.

Lembrou-se, divertida, da interpretação de Bjork, de Travessia.


Preferia Milton. Sem dúvida.


Cantou junto com a música.

Aumentou o som.

"Solto a voz nas estradas, já não quero parar

Meu caminho é de pedras, como posso sonhar

Sonho feito de brisa, vento vem terminar

Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar"

Esmurrou o próprio peito e atracou-se com a garrafa.

Ingeriu mais meio litro.

Amontoou as fotos e beijou-as.

Pediu perdão para o menino que lhe sorria e continou a cantar.

"Vou seguindo pela vida, me esquecendo de você

Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver

Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer

Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver"

Rodopiou nua pelo quarto, sempre com a garrafa na mão.

Antes que a música chegasse ao fim, apertou a tecla repeat.

Milton reiniciava sua cantoria.

Ela reiniciava seu lamento.

A garrafa chegava ao fim.

Antes do final da música, ela já estava desmaiada em sua cama, segurando uma das fotos.

Acordaria, no dia seguinte, com o cabelo sujo de vômito.

A ressaca seria sua companhia.

E sua travessia recomeçaria.

29 de jul. de 2009

Coração partido

Inspirada num número da sorte


A médica a atendeu no horário e isso lhe deu mais confiança.

Não queria admitir, mas estava em pânico.

O histórico familiar pesava.

Tentou agir naturalmente ao reponder todas as perguntas de rotina.

Demoradamente, a médica auscultou seu peito.

Começou a tremer.

Julgou que fosse o frio, já que estava sem blusa.

A médica segurou suas mãos.

- São sempre frias assim, suas mãos e suas unhas arroxeadas?

- Ô.

Foi tudo que conseguiu dizer.

- Precisamos medir sua frequência cardíaca.

E foi ligada a uma série de eletrodos.

Avisada de que o exame demorava um pouquinho, ficou refletindo sobre a vida.

Umas linhas engraçadas saiam do aparelho ao qual estava ligada.

Quantas vezes seu coração fora partido?

Resolveu enumerá-las:

1 - O amor que a traiu.

2 - O filho que morreu.

3 - O sonho que acabou.

4 - A paixão que partiu.

5 - A amiga que perdeu.

6 - A escola que deixou.

Seu coração fora partido seis vezes já.

Irritou-se, porque o número de vezes partido, dividido por sua idade, não dava um número inteiro.

Detestava conta fracionada. Nunca fora boa de matemática.

Com um suspiro, a médica sentenciou:

- Você precisa de uma cirurgia cardíaca de emergência.

Deu um sorriso. Seis partes. Ainda lhe sobrava uma.

Um gato tem sete vidas. Ela também haveria de ter.

27 de jul. de 2009

Viuvez

Inspirada num exemplo


Num último gesto de amor, beijou-lhe os lábios já descarnados.

Ele deu seu último suspiro, afogado no soluço dela.

Era a terceira vez que ficava vúva.

Mas há de quem a chamasse viúva negra.

No auge dos seus 89 anos, possuia uma imponência que fazia estremecer até o mais valente.

Conheceram-se numa aula de dança de salão.

Ele, um senhor a procura de exercícios físicos.

Ela, uma professora exigente que expeimentava no ensino da dança, uma retomada do vigor da juventude.

Não se pode dizer que apaixonaram-se.

Eram maduros e sabiam que as paixões eram efêmeras.

Simpatizaram um com o outro e, da simpatia mutua, surgiu o amor.

O sexo, segundo eles, era a cada 30 dias, mas de excelente qualidade.

Beijavam-se em público. Na boca.

Era lindo de se ver.

Por set anos ela o amara e a ele dedicara toda sua atenção.

Foram felizes.

Agora ele partia, vitimado pela fraqueza dos pulmões.

Ela ficava, com suas sapatilhas, em busca de um novo par para dançar.

25 de jul. de 2009

O homem perfeito

Inspirada numa conversa


Não pode ser muito alto. Mais baixo que eu, nem pensar.

Um pouco mais alto só, para eu me aconchegar no seu peito.

Mãos grandes. Gosto de homem com mãos grandes. A pegada é melhor.

Tem que ter pegada, ou não rola.

Tanto faz loiro ou moreno. Careca também pode.

Ah, com barba. Gosto de homem com barba.

Uma semana sem fazer a barba é o ideal. Mas o pêlo tem que ser macio. Piniquento, não dá.

Gostar de futebol é imprescindível. Pode até torcer para outro time, porque discordar, às vezes, é bom.

Mas ele tem que gostar de assistir futebol. Não de jogar. Nada de jogo de domingo com os amigos.

Precisa ser culto. Adorar cinema e livros. Disso não abro mão.

Quanto à música... qualquer estilo, exceto sertanejo.

Preferencialmente tem que gostar de MPB e Blues. Rock só se não for de gritaria.

Não curto aqueles rocks pesados, em que o cara só grita e a gente não entende o que ele canta.

Tem que ser romântico na medida certa. Não grudento, porque não suporto grude. Mas tem que demonstrar seu amor por mim.

De flores, não gosto.

Se for vaso, vou ter que ficar molhando e tals e, se for buquê, em dois dias as flores murcham e vou ficar pensando que o amor também vai morrer. Sei lá, flores não.

Prefiro que ele me faça um vídeo. Pode ser um vídeo simples. Com fotos minhas, fotos nossas.

Também pode ser uma música. Seria legal se ele fizesse uma música pra mim.

Um vídeo com a música que ele fez para mim, na trilha sonora de fundo então, seria perfeito.

Outra coisa importante: ele não pode ser vidrado só em virilha com depilação completa. Homem não imagina o quanto dói para depilar a virilha.

Ele precisa ser meu amigo, meu confidente. Terminar minhas frases e adivinhar o que estou pensando.

Mas também precisa ser meu amante. Adivinhar o que quero e fazer exatamente aquilo que desejo e quando desejo.

Quase esqueci! Ele tem que respeitar meu espaço.

Reservaremos um dia na semana para fazermos programas separados.

O ideal seria eu ir pro bar com as amigas e ele preferir alugar um filminho para assistir em casa, tomando cerveja.

Café. Ele deve gostar de café, para desbravar várias cafeterias comigo.

Tem que gostar de viajar também. Muito.

Cozinhar, eu cozinho, mas ele é quem deve lavar a louça.

Não precisa ser rico, mas ter um pouco de ambição não faz mal a ninguém.

Cheio de frescuras, também não.

Esse papo de que mulher tem que ser uma dama até no banheiro, é ridículo.

Ficar peidando e arrotando o tempo todo é nojento, ele não pode ser desse tipo. Mas também não pode ficar escandalizado quando isso acontecer. Tanto com ele, quanto comigo.

Se ele souber poesia de cor, será ótimo.

Se escrever poesia para mim, será divino.

Ele tem que achar encantador eu não gostar de maquiagem e entender minha falta de preocupação no vestir, pois percebe que valorizo outras coisas acima da aparência.

Ambientalista, mas não desses chatos. Animal em casa, só se for peixe de aquário.

Cheiroso! Isso tem que ser, Definitivamente!

Pode ser gordinho... aliás, gosto de homem gordinho. Mas não muito barrigudo.

Magrelo, não. De magrela, já basto eu.

Fofinho. Inteligente. Carinhoso.

Não sou tão exigente quanto a homem e, mesmo assim, continuo solteira... não dá pra entender.

24 de jul. de 2009

O Portador

Inspirada numa alergia
Créditos em homenagem ao meu querido Elígio.


- Estou mal. Não aguento mais tossir.

- Mas você está com febre?

- Não. Só tosse seca.

- Menos mal, porque se estivesse com febre, poderia ser gripe suína.

- Não é não. Nem tenho sintomas de gripe, é a maldita alergia mesmo. A não ser que o vírus mutou e eu sou o primeiro portador da doença que dizimará a humanidade. Nossa, dá até filme hein. Já Pensou? "O portador". Filmão. Depp faria meu personagem, porque temos o mesmo tipo físico e você sempre diz que meu nariz é igualzinho o dele. O roteiro está vindo na minha cabeça agora. Vai anotando o que vou te falando, que você escreve mais rápido. Vou regular o som do Skype para ir ditando para você. Ficou bom. Vamos lá. Está pronta? Estou vendo todas as cenas, movimentação de câmeras, o cheiro do set durante as filmagens. Farei algo de trás pra frente. Já começa com a terra devastada e uma voz ou um escrito, estilo Star Wars, vai contando o que aconteceu. Surge Depp na tela. Lindo. Saudável. Aventureiro. Talvez em trajes de Indiana Jones. Talvez. Sublinha isso. Talvez. Ele espirra. E começa a andar. Rua movimentada. Cheia de gente. Acho que ele não estará vestido de Indiana não. Enfim. Ele tosse. Gotículas saem de sua boca. A câmera registra bem isso. Câmera lenta ficará perfeito. Ele está contaminado. E todos que estão ali também estão sendo contaminados. É assim que começam as epidemias, não é mesmo? Mas onde ele pegou esse vírus? Pensa. Me dá uma sugestão? Que tal num show do Iggy Pop? Seria o máximo. O filme terá trilha sonora do Iggy. Está decidido. Espera que a campainha está tocando.

...

- O que você está fazendo aqui, amada? Estou falando com você pelo skype. É uma imagem holográfica? Como tocou a campainha?

- Bee, você está delirando, venha cá. Meu Deus, está queimando em febre. Vista as calças, vou te levar pro hospital.

18 de jul. de 2009

Um agrado

Inspirada num dia frio


Ele não ligou como prometera.

Ela tinha passado o dia com o celular na mão, checando-o de minuto em minuto, mesmo sem ter tocado.

A noite, em claro, fora um martírio.

Pela manhã estava com olheiras e mau humor.

Depois do costumeiro café, sem açucar, saiu às compras.

Como no dia anterior, foi para a loja de lingerie, mas dessa vez, não escolheu conjuntos sexies, nem calcinhas provocantes. Comprou um pijama longo. De flanela.

Dirigiu-se ao supermercado e, no lugar de comprar ingredientes para um jantar romântico e velas, comprou lasanha congelada, chocolate, pipoca de microondas e lenço de papel.

No mercado municipal presenteou-se com luvas, um gorro e longas meias coloridas, com dedinhos.

Antes de voltar para casa, parou na locadora e escolheu meia dúzia de filmes antigos, em preto e branco, daqueles que tornam o choro inevitável.

Já em casa, descarregou as compras, ligou um Blues e entrou no banho.

Enquanto a água fervente escorria por seu corpo, ouvia Stevie Ray Vaughan e sentia raiva de si mesma. Dois dias antes havia se depilado inteira. Teve náuseas de dor a cada puxada de cera, a virilha ficara avermelhada, mas tudo era válido para agradá-lo.

Desgraçado, sofrera em vão.

Ao som da gaita de Cephas & Wiggins, secou os cabelos, vestiu o pijama novo, o gorro, as luvas e calçou as meias com dedinhos.

Gargalhou ao se ver no espelho. Aquela era ela. Nada convencional. Estava com saudades de si mesma e se jogou um beijo estalado.

Levou para a cama seu "kit-dia-frio-deprê": comida pronta, chocolate, pipoca, lenço de papel e uma garrafa de vinho (intacta desde a noite anterior).

Colocou o primeiro filme e aconchegou-se.

Pronto.

Agora sim, poderia chorar todas as suas mágoas.

6 de jul. de 2009

Perdas e ganhos

Inspirada numa seta no alvo


Sempre escutou o velho ditado "Azar no amor, sorte no jogo", mas nunca achou que fosse verídico.


Pessoas sortudas tinham sorte em tudo. Sempre.


Ela era azarada em tudo. Sempre.


Sua vida era caótica. Especialmente a amorosa. Cheia de altos e baixos.


Primeiro perdeu o amigo de cama-mesa-banho para uma mais peituda e resolveu, do nada, apostar pela primeira vez na Mega Sena. E acertou a quadra.


Um mês depois rompeu, em definitivo, os laços com um antigo caso. Acertou a quina na Mega Sena.


No entanto, só teve certeza que o azar amoroso lhe trazia recompensas financeiras, quando o amor da sua vida morreu repentinamente, e ela ganhou na Mega Sena.


Na última vez em que se teve notícias dela, estava, feliz da vida, morando numa ilha particular, com um boneco inflável.